"Wim Wenders mostrou pela primeira vez em circuito planetário como são e o que fazem os anjos numa metrópole
contemporânea. Com Asas do Desejo ficamos sabendo, espantados, que eles são muitos. Só em Berlim contam-se às dezenas.
Perambulam pelas cidades meio ao acaso, invisíveis, enfiados
em grandes casacos, com o cabelo preso em rabicho, mãos no
bolso, observando em silêncio o sofrimento dos mortais. Quando querem, ouvem os pensamentos dos homens, mulheres e
crianças. Aproximam-se deles devagarzinho, inclinam a cabeça
em direção ao ombro e escutam seus monólogos, suas preces,
devaneios, anseios. O que faz uma anjo quando percebe que a
desesperança invade a alma de um humano? Toca-lhe no ombro
de leve, com a ponta dos dedos, e o sofredor se dá conta de algo
a roçar-lhe o entorno, mas não sabe ao certo o quê. Intui uma
presença estranha mas nada vê; sente como que um farfalhar de
folhas, uma perturbação desconhecida, uma espécie de cintilân-
cia. E aí seu corpo caído retoma um vigor inesperado, o pensamento de repente bifurca para longe da morte, ocorre-lhe como
que um pequeno renascimento.
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Mas os anjos não são deuses. Eles não podem tudo. Por
exemplo, não podem estancar a queda de um suicida do alto de
um arranha-céu. Não podem dar trabalho a um desempregado.
Tampouco têm o poder de agenciar parceiro para uma trapezista solitária. Nem sequer está ao alcance deles criar um público
para um narrador envelhecido, num mundo que não quer mais
ouvir suas histórias, pois prefere perder a memória. Os anjos
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não podem mudar a face do Planeta nem dirigir o curso do
Mundo. No máximo podem tornar mais leve o fardo de uma ou
outra vida, de um ou outro momento de uma vida ou outra. Um
pouco como um terapeuta: essa disponibilidade para ouvir, para
tocar, essa presença discreta que pode às vezes suscitar um novo
começo — mas também essa impotência para determinar, para
resolver, para viver no lugar de.
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O que poucos sabem — e isto se aprende no filme — é que
os anjos têm inveja dos homens. Eles vêem muita coisa, ouvem
tudo, podem estar em todos os lugares, observam os humanos
ora com espanto, ora com admiração, ora com compaixão —
mas sempre com uma pontinha de inveja. Do que têm inveja os
anjos? Da finitude dos mortais. Da sua fragilidade, da sua
inscrição no tempo, do sentir frio, do sentir fome, do sentir
doce, do esfregar as mãos uma na outra numa madrugada
gelada, de sentir o calor de um copo de café esquentando o
corpo, de ter saudades, incertezas, de morrer de amor e de ter
medo da morte. A imortalidade dos anjos é para eles um cárcere
cruel. Ela os aprisiona no tédio infernal do Mesmo, na repetitividade sem história, num eterno presente que é em si a imagem
cinza de uma morte sem desfecho.
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Curiosa inversão: então não são os homens os infelizes do
filme, como seria de se esperar, mas os anjos. Sua permanência
tediosa sobre a face da Terra, seu eterno flutuar por sobre coisas
e homens, sua desencarnação assexuada, sua ahistoricidade,
tudo isso está muito mais próximo do sofrimento da loucura do
que da disponibilidade dos terapeutas. Pois há na loucura um
sofrimento que é da ordem da desencarnação, da atemporalidade, de uma eternidade vazia, de uma ahistoricidade, de uma
existência sem concretude (ou com um excesso de concretude),
sem começo nem fim, corn aquela dor terrível de não ter dor,
a dor maior de ter expurgado o devir e estar condenado a
testemunhar com inveja silenciosa a encarnação alheia.
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No filme de Wenders, um dia um anjo resolve encarnar.
Vira um mortal de carne e osso, com frio, fome, sede, saudade,
sangue e dor, tudo aquilo a que nós temos direito cotidianamente e que é o nosso quinhão precioso sobre esse planeta. O ex-
anjo-recém-encarnado apaixona-se então pela trapezista solitária, e vive com ela um instante único, em que sente ter
descoberto pela primeira vez a verdadeira eternidade. Não
aquela eternidade vazia dos anjos, mas a eternidade cravada na
fugacidade de um devir."
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trecho do livro - Nau do tempo rei
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