quinta-feira, 11 de agosto de 2011

melhor definição de água que já li

   Rio Ganges - Devprayag
"Ela é branca e brilhante, informe e fresca, passiva e obstinada em seu único vício: o peso; dispõe de meios excepcionais para satisfazer esse vício: contornando , penetrando, erodindo, filtrando. Dentro dela mesmo esse vício também age: ela desmorona incessantemente, renuncia a cada instante a qualquer forma, só tende a humilhar-se, esparramar-se de bruços no chão, quase cadáver como os monges de algumas ordens [...] Poderíamos quase dizer que a água é louca devido a essa necessidade histérica de só obedecer ao seu peso, que a possui como uma idéia fixa [...] LÍQUIDO  é por definição o que prefere obedecer ao peso a manter sua forma, o que recusa toda forma para obedecer a seu peso. E que perde toda compostura por causa dessa idéia fixa, desse escrúpulo doentio [...] Inquietude da água: sensível à menor mudança de inclinação. Saltando as escadas com os dois pés ao mesmo tempo. Brincalhona, de uma obediência pueril, voltando logo que a chamamos mudando a inclinação para este lado."
Francis Ponge

domingo, 7 de agosto de 2011

Der Himmel über Berlin- Wings of Desire:



"Wim Wenders mostrou pela primeira vez em circuito planetário como são e o que fazem os anjos numa metrópole contemporânea. Com Asas do Desejo ficamos sabendo, espantados, que eles são muitos. Só em Berlim contam-se às dezenas. Perambulam pelas cidades meio ao acaso, invisíveis, enfiados em grandes casacos, com o cabelo preso em rabicho, mãos no bolso, observando em silêncio o sofrimento dos mortais. Quando querem, ouvem os pensamentos dos homens, mulheres e crianças. Aproximam-se deles devagarzinho, inclinam a cabeça em direção ao ombro e escutam seus monólogos, suas preces, devaneios, anseios. O que faz uma anjo quando percebe que a desesperança invade a alma de um humano? Toca-lhe no ombro de leve, com a ponta dos dedos, e o sofredor se dá conta de algo a roçar-lhe o entorno, mas não sabe ao certo o quê. Intui uma presença estranha mas nada vê; sente como que um farfalhar de folhas, uma perturbação desconhecida, uma espécie de cintilân- cia. E aí seu corpo caído retoma um vigor inesperado, o pensamento de repente bifurca para longe da morte, ocorre-lhe como que um pequeno renascimento.
Mas os anjos não são deuses. Eles não podem tudo. Por exemplo, não podem estancar a queda de um suicida do alto de um arranha-céu. Não podem dar trabalho a um desempregado. Tampouco têm o poder de agenciar parceiro para uma trapezista solitária. Nem sequer está ao alcance deles criar um público para um narrador envelhecido, num mundo que não quer mais ouvir suas histórias, pois prefere perder a memória. Os anjos

não podem mudar a face do Planeta nem dirigir o curso do Mundo. No máximo podem tornar mais leve o fardo de uma ou outra vida, de um ou outro momento de uma vida ou outra. Um pouco como um terapeuta: essa disponibilidade para ouvir, para tocar, essa presença discreta que pode às vezes suscitar um novo começo — mas também essa impotência para determinar, para resolver, para viver no lugar de.
O que poucos sabem — e isto se aprende no filme — é que os anjos têm inveja dos homens. Eles vêem muita coisa, ouvem tudo, podem estar em todos os lugares, observam os humanos ora com espanto, ora com admiração, ora com compaixão — mas sempre com uma pontinha de inveja. Do que têm inveja os anjos? Da finitude dos mortais. Da sua fragilidade, da sua inscrição no tempo, do sentir frio, do sentir fome, do sentir doce, do esfregar as mãos uma na outra numa madrugada gelada, de sentir o calor de um copo de café esquentando o corpo, de ter saudades, incertezas, de morrer de amor e de ter medo da morte. A imortalidade dos anjos é para eles um cárcere cruel. Ela os aprisiona no tédio infernal do Mesmo, na repetitividade sem história, num eterno presente que é em si a imagem cinza de uma morte sem desfecho.
Curiosa inversão: então não são os homens os infelizes do filme, como seria de se esperar, mas os anjos. Sua permanência tediosa sobre a face da Terra, seu eterno flutuar por sobre coisas e homens, sua desencarnação assexuada, sua ahistoricidade, tudo isso está muito mais próximo do sofrimento da loucura do que da disponibilidade dos terapeutas. Pois há na loucura um sofrimento que é da ordem da desencarnação, da atemporalidade, de uma eternidade vazia, de uma ahistoricidade, de uma existência sem concretude (ou com um excesso de concretude), sem começo nem fim, corn aquela dor terrível de não ter dor, a dor maior de ter expurgado o devir e estar condenado a testemunhar com inveja silenciosa a encarnação alheia.
No filme de Wenders, um dia um anjo resolve encarnar. Vira um mortal de carne e osso, com frio, fome, sede, saudade, sangue e dor, tudo aquilo a que nós temos direito cotidianamente e que é o nosso quinhão precioso sobre esse planeta. O ex- anjo-recém-encarnado apaixona-se então pela trapezista solitária, e vive com ela um instante único, em que sente ter descoberto pela primeira vez a verdadeira eternidade. Não aquela eternidade vazia dos anjos, mas a eternidade cravada na fugacidade de um devir."  

trecho do livro - Nau do tempo rei
" Nunca no mundo uma bala matou uma idéia. "
                                                    Monteiro Lobato

gustav moreau


A libélula




"Somente pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que um outro vê desse universo que não é o mesmo que o nosso e cujas paisagens permaneceriam tão desconhecidas para nós quanto as que podem existir na lua."
                                          Marcel Proust, in 'O Tempo Reencontrado'